O recurso preenche os requisitos de admissibilidade, motivo pelo qual dele conheço.
Como relatado, em suma a parte recorrente alega que a conduta do Município de Colinas do Tocantins-TO de divulgar o nome da sua genitora como a primeira falecida em decorrência de Covid-19 lhe ocasionou danos morais.
Extrai-se do prontuário médico (evento 23-ANEXO2) que a sra. Constância Gama da Silva, genitora da recorrente, foi internada no Hospital Municipal de Colinas do Tocantins no dia 18/05/2020, constando em seu prontuário médico situação de urgência, bem como quadro de desconforto respiratório, crises de tosse, febre baixa, gemente, palidez cutânea, saturação baixa, dispneia e taquicardia há alguns dias.
Foi realizado raio-x torácico, no mesmo dia, constando alterações. No dia 21/05/2020, consta pedido de encaminhamento da paciente para UTI do Hospital Regional de Araguaína. No laudo médico de encaminhamento, consta “dispneia + tosse+ febre com dessaturação e rebaixamento do nível de consciência [...] aguarda swab”. Consta também TC tórax sugestivo COVID-19. O laudo foi assinado às 14h56min. A autorização para o HRA saiu por volta das 16h, como se lê em e-mail anexo ao prontuário. Todavia, às 22h04min do dia 21/05, o quadro da sra. Constância evoluiu para óbito.
Ainda, consta que o exame de swab positivo para Covid-19 foi liberado em 21/05/2020, mesma data do óbito, não constando o horário de liberação (evento 23-ANEXO3).
Tais fatos são incontroversos no processo. Também é incontroverso que, na Certidão de Óbito da Sra. Constância, constou como causa do óbito “doença respiratória aguda grave”, não constando Covid-19.
Segundo esclareceu a médica Letícia Lopes Coimbra, plantonista no dia do falecimento da Sra. Constância, em audiência de instrução e julgamento, o fato de não ter constado na certidão de óbito, como causa mortis, a Covid-19, se deu porque o resultado do exame de swab ainda era aguardado, ademais, ainda não havia CID para morte para Covid e os médicos ainda não sabiam exatamente como agir, pois o contexto era do início da pandemia, já com aumento de internações.
Nesse contexto, alega a recorrente que se a causa mortis indicada no prontuário médico não é Covid-19, não poderia o Município de Colinas do Tocantins-TO fazer divulgação como se a morte da sra. Constância tivesse sido ocasionada por tal vírus. Para tanto, alega que o conhecimento do quadro de Covid-19, pelo Município de Colinas do Tocantins, só poderia ocorrer com a violação do sigilo do prontuário médico do paciente, já que na certidão de óbito não constava referida informação.
Pois bem, a responsabilidade do ente público por atos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, é objetiva, nos termos do §6º, do art. 37, da Constituição Federal. Isto é, para a configuração da responsabilidade do ente público, perquire-se apenas sobre a existência de ato ilícita, do nexo causal e do dano, não sendo exigível a presença da culpa ou dolo.
Cabe saber se, no caso em exame, ocorreu um ato ilícito perpetrado pelo ente público municipal. Para tanto, é necessário responder a algumas perguntas.
A primeira pergunta que se deve responder diz respeito à ocorrência do ato ilícito, e pode ser assim formulada: Pode o Município divulgar a causa da morte de algum cidadão nele residente, inclusive com referência a seu nome e idade, em contexto de uma pandemia?
Essa primeira pergunta admite duas respostas. Se a resposta for negativa (isto é, o Município não pode fazer a divulgação), é necessário partir para a análise da presença do dano, perquirindo se esse ocorre in re ipsa ou se é necessária sua comprovação.
Se a resposta à primeira pergunta, no entanto, for positiva, coloca-se em pauta uma segunda pergunta: Pode o Município divulgar, como causa da morte, outra que não conste oficialmente na certidão de óbito? Se a resposta for negativa: há ato ilícito. Se a resposta for positiva: não há ato ilícito.
Concluindo-se pela existência de ato ilícito, ainda é preciso perquirir sobre o dano – seria ocorrente in re ipsa ou dependeria de comprovação? Se a resposta for que o dano ocorre in re ipsa, havendo o nexo causal, fica configurada a responsabilidade objetiva. Se a resposta for no sentido de ser dependente de comprovação, há que se verificar se a comprovação ocorreu.
Passemos, pois, à análise da primeira pergunta: Pode o Município divulgar a causa da morte de algum cidadão nele residente, inclusive com referência a seu nome e idade, em contexto de uma pandemia?
Deve-se ter em mente que essa pergunta só é respondível tendo em mente um conflito entre o direito de privacidade e à proteção de dados pessoais, de um lado, e a liberdade de expressão, sob o viés do direito de todos os cidadãos serem informados acerca de fatos ocorridos em um período pandêmico.
A esse respeito, incumbe dizer, inicialmente, que a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), não é aplicável ao caso em questão, pois só entrou em vigor 24 (vinte e quatro) meses após a sua publicação, que se deu em 14 de agosto de 2018 e, quanto a alguns artigos, só entrou em vigor posteriormente.
No entanto, não há dúvidas de que o direito à proteção de dados pessoais, mesmo antes de a LGPD entrar em vigor, era assegurado, com base no direito de privacidade, que tem sede constitucional no art. 5º, X, da CF: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Como leciona Anderson Schreiber, “a privacidade pode ser definida sinteticamente como o direito ao controle da coleta e da utilização dos próprios dados pessoais” (p. 139)
De outra senda, também inexistem dúvidas que os dados da sra. Constância divulgados no sítio eletrônico do Município de Colinas do Tocantins-TO são dados pessoais (nome completo e idade)(evento 1-OUT11, autos originários).
Põe-se em questão se o nome e a idade da sra. Constância poderiam ter sido divulgados pelo Município de Colinas do Tocantins, em face do momento pandêmico vivido. A alegação da recorrente, sua filha, é que esses dados não poderiam ter sido divulgados, pois a legislação de enfrentamento da COVID-19 determinava o compartilhamento de dados pessoais unicamente entre as entidades da Administração Pública.
De fato, o art. 6º, da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, prevê, expressamente, a obrigação de compartilhamento, mas ressalva, no §2º, in fine, “o direito ao sigilo das informações pessoais”.
Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.
§ 1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.
§ 2º O Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais.
O compartilhamento de informações sobre o quadro de saúde da Sra. Constância, portanto, era obrigatório, entre as entidades da Administração Pública, mas com finalidade específica, qual seja, evitar a propagação do vírus e informar o Poder Público para que tomasse providências nesse sentido.
Resta dizer se o compartilhamento de nome e idade infringiriam o teor do §2º, do art. 6º de sobredita lei, o que não se pode responder somente com recurso à interpretação literal da lei, mas também levando em conta o interesse público colidente, relativamente ao conhecimento sobre os casos médicos de Covid-19, durante o contexto pandêmico.
Nesse palmilhar, deve-se considerar que o Supremo Tribunal Federal vem julgando no sentido de conferir, à liberdade de expressão, uma posição preferencial prima facie frente aos direitos de personalidade, em razão de a liberdade de expressão ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades (vide Recl. 22328, Rel. Min. Roberto Barroso, julgada em 06/03/2018; ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgada em 27/02/2008, etc.).
Isso não significa que, no caso concreto, a liberdade de expressão (incluído o direito de informar) sairá sempre sobressalente, mas, tão somente que deve ser considerado o interesse dos cidadãos em geral de saber sobre fatos que importam para a coletividade.
A esse respeito, ensina Elimar Szaniawski que
Quando o conflito se der entre o direito à intimidade da vida privada do homem público e o direito à liberdade de imprensa e de informação ao público, dirime-se o mesmo mediante a aplicação do princípio da Sozialadequanz, ou da causalidade adequada social, quando se verificará se a revelação sobre determinado aspecto da vida privada, efetivamente cumpre uma função social útil, e se inexiste uma desproporção entre a lesão dos interesses pessoais da pessoa, objeto da informação, e a finalidade da publicação. Deste modo, pode-se proteger, satisfatoriamente, a intimidade e outros aspectos da vida privada e familiar do homem público e demais pessoas que pertençam à história contemporânea (Personen der Zeitgeschichte), estabelecendo-se os limites à atuação indiscreta da imprensa que possa colocar em perigo o direito de personalidade do indivíduo cuja atividade ultrapasse a esfera privada e profissional. (SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2005, p. 561)
No caso dos autos, deve-se distinguir, portanto, entre o interesse público e o interesse do público. É certo que a população em geral teria interesse em saber das circunstâncias nas quais ocorreu a morte de vítima da Covid-19, quanto a isso, não há dúvidas. Por outro lado, não se verifica um interesse direto da sociedade de saber quem faleceu como vítima de Covid-19, isto é, a pessoa individualizada que foi acometida pelo vírus e veio a falecer. A informação divulgada pelo Município de Colinas poderia informar a população da morte sem fazer referência ao nome da falecida. O nome da falecida, na verdade, não era de interesse público, mas sim interesse do público, e sua divulgação contribuiu, meramente, para a satisfação da curiosidade coletiva.
Nesse prisma, a resposta à primeira questão é negativa, isto é, para informar a população acerca das vítimas da Covid-19, o Município de Colinas não precisava, para tanto, registrar o nome completo da falecida. Mister reconhecer, portanto, que embora o ente público tenha veiculado o nome da falecida com intuito de veicular uma mensagem de conforto à família (evento 1, OUT11, autos originários), com isso incorreu em ato ilícito, violando o disposto no §2º, do art. 6º, da Lei nº 13.979/2020.
Nesse prisma, cabe passar para a última pergunta, que diz respeito à ocorrência do dano moral. No caso em questão, a divulgação de dados pessoais de pessoa falecida, sem autorização da família, enseja a indenização por danos morais in re ipsa, ou os danos devem ser comprovados?
Como ensina Felipe Palhares, citado por Gisela Sampaio da Cruz Guedes, a aplicação de forma irrestrita da presunção de dano no terreno da proteção de dados pessoais ocasionaria “situações esdrúxulas”, de modo que não se pode defender, sem que isso importe em risco demasiado de situações desproporcionais, que a mera violação de dados pessoais configure dano moral in re ipsa:
A aplicação de forma irrestrita das presunções no âmbito da LGPD, nas palavras de Felipe Palhares, “traria situações esdrúxulas”. Pense-se no “cenário hipotético no qual uma organização sofresse um vazamento de dados cujos únicos dados vazados fossem o primeiro nome de seus clientes, sem qualquer outra informação, conceder uma indenização por dano moral na base da presunção desse dano poderia ser desproporcional”. E, de fato, seria mesmo desproporcional e contrário ao que prega o princípio da reparação integral. Afinal, fere-se tal princípio toda a vez em que o montante indenizatório fica além ou aquém do dano. (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Dano moral in re ipsa e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: ‘presunção e água benta, cada um toma a que quer’. In: PALHARES, Felipe (coord.). Estudos sobre privacidade de dados [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. RB-9.4)
Nesse passo, entende-se que os danos morais, em caso de violação do direito de proteção de dados pessoais, devem ser comprovados, não se aplicando qualquer tipo de presunção sobre a sua ocorrência.
No caso dos autos, há que se ter em mente que a filha da sra. Constância é quem litiga, alegando danos morais sofridos pela própria autora, em razão de ter sofrido “preconceito” por parte da sociedade, que narrou assim:
“Com a veiculação da notícia na imprensa oficial a requerente e todo seu grupo familiar foram muito descriminados e humilhados, pois as pessoas de suas ruas, os amigos e conhecidos da comunidade não queriam se aproximar da família da primeira vítima do COVID-19 com medo do contágio e morte.
Em meio ao luto e ao sofrimento pela perda recente da mãe, por não poder fazer nem velório para se despedir e de não poder ao menos enterrá-la, a requerente teve que conviver com o preconceito e com os comentários maldosos dos vizinhos e conhecidos dizendo que a requerente estava espalhando o vírus. No momento de maior dor, a requerente teve também que driblar a dor do preconceito, o que tornou tudo isso ainda mais doloroso.”
(evento 1-INIC1, autos originários).
Para comprovar sua tese, a autora produziu prova testemunhal, tendo a testemunha, sra. Leonina, afirmado que as pessoas tiveram efetivamente um certo receio, preconceito “de chegar perto, de ir na residência, esse tipo de preconceito” porque “a população não sabia, não tinha vacina, não sabia como reagir”, e “todo mundo ficava receoso”.
Nesse ponto, é de se concordar com o juízo de primeiro grau, pois o suposto preconceito por que passou a autora/recorrente, na verdade, foi um sentimento coletivo que acometeu a todos, isto é, o receio de ser contaminado, o receio de ter algum parente contaminado, o medo da morte, o temor do desconhecido.
A pandemia ocasionada pelo vírus Covid-19, principalmente no seu início, em que eram veiculadas notícias de milhares de mortos em todo o mundo, ensejo um pânico coletivo de aproximação social. Não se pode dizer que existe um nexo causal entre esse sentimento coletivo de não querer aproximação com outras pessoas e a reportagem veiculada na mídia do ente público.
Cabe salientar que a Lei nº 13.979/2022, mesma lei invocada pela autora/recorrente como fundamento para sua tese, previa medidas de isolamento e quarentena. Como então pode alegar a recorrente que sofreu dano moral em razão de as pessoas não quererem se aproximar? Ora, era certo que no contexto da pandemia, ninguém queria se aproximar de ninguém, salvo exceções duramente reprimidas. Fez parte do contexto pandêmico a necessidade de isolamento.
Assim, embora esteja presente a prática de ato ilícito, não há dano moral indenizável, nesse caso, pois não se vislumbra o nexo causal direto entre o ato praticado pelo Município de Colinas e o fato de as pessoas não quererem se aproximar dos familiares da falecida, pois isso ocorreria independentemente de ter sido veiculada a notícia sobre o falecimento da Sra. Constância nas redes municipais, dado o cenário de pandemia vivenciado.
Ante o exposto, voto no sentido de NEGAR PROVIMENTO ao recurso, mantendo a sentença recorrida por seus próprios fundamentos. é o meu voto, que apresento aos Desembargadores componentes da 5ª Turma Julgadora, da 2ª Câmara Cível, deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.