Documento:726072
Poder Judiciário
JUSTIÇA ESTADUAL
Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins
GAB. DO DES. ADOLFO AMARO MENDES

Apelação Cível Nº 0002270-47.2021.8.27.2713/TO

RELATOR: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

APELANTE: CANDIDA GAMA VILANOVA (AUTOR)

ADVOGADO(A): KADÚ FARIA RODRIGUES (OAB TO006351)

ADVOGADO(A): URISMAR MIRANDA MORAIS (OAB TO009203)

APELADO: MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS (RÉU)

VOTO

O recurso preenche os requisitos de admissibilidade, motivo pelo qual dele conheço.

Como relatado, em suma a parte recorrente alega que a conduta do Município de Colinas do Tocantins-TO de divulgar o nome da sua genitora como a primeira falecida em decorrência de Covid-19 lhe ocasionou danos morais.

Extrai-se do prontuário médico (evento 23-ANEXO2) que a sra. Constância Gama da Silva, genitora da recorrente, foi internada no Hospital Municipal de Colinas do Tocantins no dia 18/05/2020, constando em seu prontuário médico situação de urgência, bem como quadro de desconforto respiratório, crises de tosse, febre baixa, gemente, palidez cutânea, saturação baixa, dispneia e taquicardia há alguns dias.

Foi realizado raio-x torácico, no mesmo dia, constando alterações. No dia 21/05/2020, consta pedido de encaminhamento da paciente para UTI do Hospital Regional de Araguaína. No laudo médico de encaminhamento, consta “dispneia + tosse+ febre com dessaturação e rebaixamento do nível de consciência [...] aguarda swab”. Consta também TC tórax sugestivo COVID-19. O laudo foi assinado às 14h56min. A autorização para o HRA saiu por volta das 16h, como se lê em e-mail anexo ao prontuário. Todavia, às 22h04min do dia 21/05, o quadro da sra. Constância evoluiu para óbito.

Ainda, consta que o exame de swab positivo para Covid-19 foi liberado em 21/05/2020, mesma data do óbito, não constando o horário de liberação (evento 23-ANEXO3).

Tais fatos são incontroversos no processo. Também é incontroverso que, na Certidão de Óbito da Sra. Constância, constou como causa do óbito “doença respiratória aguda grave”, não constando Covid-19.

Segundo esclareceu a médica Letícia Lopes Coimbra, plantonista no dia do falecimento da Sra. Constância, em audiência de instrução e julgamento, o fato de não ter constado na certidão de óbito, como causa mortis, a Covid-19, se deu porque o resultado do exame de swab ainda era aguardado, ademais, ainda não havia CID para morte para Covid e os médicos ainda não sabiam exatamente como agir, pois o contexto era do início da pandemia, já com aumento de internações.

Nesse contexto, alega a recorrente que se a causa mortis indicada no prontuário médico não é Covid-19, não poderia o Município de Colinas do Tocantins-TO fazer divulgação como se a morte da sra. Constância tivesse sido ocasionada por tal vírus. Para tanto, alega que o conhecimento do quadro de Covid-19, pelo Município de Colinas do Tocantins, só poderia ocorrer com a violação do sigilo do prontuário médico do paciente, já que na certidão de óbito não constava referida informação.

Pois bem, a responsabilidade do ente público por atos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, é objetiva, nos termos do §6º, do art. 37, da Constituição Federal. Isto é, para a configuração da responsabilidade do ente público, perquire-se apenas sobre a existência de ato ilícita, do nexo causal e do dano, não sendo exigível a presença da culpa ou dolo.

Cabe saber se, no caso em exame, ocorreu um ato ilícito perpetrado pelo ente público municipal. Para tanto, é necessário responder a algumas perguntas.

A primeira pergunta que se deve responder diz respeito à ocorrência do ato ilícito, e pode ser assim formulada: Pode o Município divulgar a causa da morte de algum cidadão nele residente, inclusive com referência a seu nome e idade, em contexto de uma pandemia?

Essa primeira pergunta admite duas respostas. Se a resposta for negativa (isto é, o Município não pode fazer a divulgação), é necessário partir para a análise da presença do dano, perquirindo se esse ocorre in re ipsa ou se é necessária sua comprovação.

Se a resposta à primeira pergunta, no entanto, for positiva, coloca-se em pauta uma segunda pergunta: Pode o Município divulgar, como causa da morte, outra que não conste oficialmente na certidão de óbito? Se a resposta for negativa: há ato ilícito. Se a resposta for positiva: não há ato ilícito.

Concluindo-se pela existência de ato ilícito, ainda é preciso perquirir sobre o dano – seria ocorrente in re ipsa ou dependeria de comprovação? Se a resposta for que o dano ocorre in re ipsa, havendo o nexo causal, fica configurada a responsabilidade objetiva. Se a resposta for no sentido de ser dependente de comprovação, há que se verificar se a comprovação ocorreu.

Passemos, pois, à análise da primeira pergunta: Pode o Município divulgar a causa da morte de algum cidadão nele residente, inclusive com referência a seu nome e idade, em contexto de uma pandemia?

Deve-se ter em mente que essa pergunta só é respondível tendo em mente um conflito entre o direito de privacidade e à proteção de dados pessoais, de um lado, e a liberdade de expressão, sob o viés do direito de todos os cidadãos serem informados acerca de fatos ocorridos em um período pandêmico.

A esse respeito, incumbe dizer, inicialmente, que a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), não é aplicável ao caso em questão, pois só entrou em vigor 24 (vinte e quatro) meses após a sua publicação, que se deu em 14 de agosto de 2018 e, quanto a alguns artigos, só entrou em vigor posteriormente.

No entanto, não há dúvidas de que o direito à proteção de dados pessoais, mesmo antes de a LGPD entrar em vigor, era assegurado, com base no direito de privacidade, que tem sede constitucional no art. 5º, X, da CF: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Como leciona Anderson Schreiber, “a privacidade pode ser definida sinteticamente como o direito ao controle da coleta e da utilização dos próprios dados pessoais” (p. 139)

De outra senda, também inexistem dúvidas que os dados da sra. Constância divulgados no sítio eletrônico do Município de Colinas do Tocantins-TO são dados pessoais (nome completo e idade)(evento 1-OUT11, autos originários).

Põe-se em questão se o nome e a idade da sra. Constância poderiam ter sido divulgados pelo Município de Colinas do Tocantins, em face do momento pandêmico vivido. A alegação da recorrente, sua filha, é que esses dados não poderiam ter sido divulgados, pois a legislação de enfrentamento da COVID-19 determinava o compartilhamento de dados pessoais unicamente entre as entidades da Administração Pública.

De fato, o art. 6º, da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, prevê, expressamente, a obrigação de compartilhamento, mas ressalva, no §2º, in fine, “o direito ao sigilo das informações pessoais”.

 

Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.

§ 1º  A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.

§ 2º  O Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais.

 

O compartilhamento de informações sobre o quadro de saúde da Sra. Constância, portanto, era obrigatório, entre as entidades da Administração Pública, mas com finalidade específica, qual seja, evitar a propagação do vírus e informar o Poder Público para que tomasse providências nesse sentido.

Resta dizer se o compartilhamento de nome e idade infringiriam o teor do §2º, do art. 6º de sobredita lei, o que não se pode responder somente com recurso à interpretação literal da lei, mas também levando em conta o interesse público colidente, relativamente ao conhecimento sobre os casos médicos de Covid-19, durante o contexto pandêmico.

Nesse palmilhar, deve-se considerar que o Supremo Tribunal Federal vem julgando no sentido de conferir, à liberdade de expressão, uma posição preferencial prima facie frente aos direitos de personalidade, em razão de a liberdade de expressão ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades (vide Recl. 22328, Rel. Min. Roberto Barroso, julgada em 06/03/2018; ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgada em 27/02/2008, etc.).

Isso não significa que, no caso concreto, a liberdade de expressão (incluído o direito de informar) sairá sempre sobressalente, mas, tão somente que deve ser considerado o interesse dos cidadãos em geral de saber sobre fatos que importam para a coletividade.

A esse respeito, ensina Elimar Szaniawski que

 

Quando o conflito se der entre o direito à intimidade da vida privada do homem público e o direito à liberdade de imprensa e de informação ao público, dirime-se o mesmo mediante a aplicação do princípio da Sozialadequanz, ou da causalidade adequada social, quando se verificará se a revelação sobre determinado aspecto da vida privada, efetivamente cumpre uma função social útil, e se inexiste uma desproporção entre a lesão dos interesses pessoais da pessoa, objeto da informação, e a finalidade da publicação. Deste modo, pode-se proteger, satisfatoriamente, a intimidade e outros aspectos da vida privada e familiar do homem público e demais pessoas que pertençam à história contemporânea (Personen der Zeitgeschichte), estabelecendo-se os limites à atuação indiscreta da imprensa que possa colocar em perigo o direito de personalidade do indivíduo cuja atividade ultrapasse a esfera privada e profissional. (SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2005, p. 561)

 

No caso dos autos, deve-se distinguir, portanto, entre o interesse público e o interesse do público. É certo que a população em geral teria interesse em saber das circunstâncias nas quais ocorreu a morte de vítima da Covid-19, quanto a isso, não há dúvidas. Por outro lado, não se verifica um interesse direto da sociedade de saber quem faleceu como vítima de Covid-19, isto é, a pessoa individualizada que foi acometida pelo vírus e veio a falecer. A informação divulgada pelo Município de Colinas poderia informar a população da morte sem fazer referência ao nome da falecida. O nome da falecida, na verdade, não era de interesse público, mas sim interesse do público, e sua divulgação contribuiu, meramente, para a satisfação da curiosidade coletiva.

Nesse prisma, a resposta à primeira questão é negativa, isto é, para informar a população acerca das vítimas da Covid-19, o Município de Colinas não precisava, para tanto, registrar o nome completo da falecida. Mister reconhecer, portanto, que embora o ente público tenha veiculado o nome da falecida com intuito de veicular uma mensagem de conforto à família (evento 1, OUT11, autos originários), com isso incorreu em ato ilícito, violando o disposto no §2º, do art. 6º, da Lei nº 13.979/2020.

Nesse prisma, cabe passar para a última pergunta, que diz respeito à ocorrência do dano moral. No caso em questão, a divulgação de dados pessoais de pessoa falecida, sem autorização da família, enseja a indenização por danos morais in re ipsa, ou os danos devem ser comprovados?

Como ensina Felipe Palhares, citado por Gisela Sampaio da Cruz Guedes, a aplicação de forma irrestrita da presunção de dano no terreno da proteção de dados pessoais ocasionaria “situações esdrúxulas”, de modo que não se pode defender, sem que isso importe em risco demasiado de situações desproporcionais, que a mera violação de dados pessoais configure dano moral in re ipsa:

 

A aplicação de forma irrestrita das presunções no âmbito da LGPD, nas palavras de Felipe Palhares, “traria situações esdrúxulas”. Pense-se no “cenário hipotético no qual uma organização sofresse um vazamento de dados cujos únicos dados vazados fossem o primeiro nome de seus clientes, sem qualquer outra informação, conceder uma indenização por dano moral na base da presunção desse dano poderia ser desproporcional”. E, de fato, seria mesmo desproporcional e contrário ao que prega o princípio da reparação integral. Afinal, fere-se tal princípio toda a vez em que o montante indenizatório fica além ou aquém do dano. (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Dano moral in re ipsa e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: ‘presunção e água benta, cada um toma a que quer’. In: PALHARES, Felipe (coord.). Estudos sobre privacidade de dados [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. RB-9.4)

 

Nesse passo, entende-se que os danos morais, em caso de violação do direito de proteção de dados pessoais, devem ser comprovados, não se aplicando qualquer tipo de presunção sobre a sua ocorrência.

No caso dos autos, há que se ter em mente que a filha da sra. Constância é quem litiga, alegando danos morais sofridos pela própria autora, em razão de ter sofrido “preconceito” por parte da sociedade, que narrou assim:

 

“Com a veiculação da notícia na imprensa oficial a requerente e todo seu grupo familiar foram muito descriminados e humilhados, pois as pessoas de suas ruas, os amigos e conhecidos da comunidade não queriam se aproximar da família da primeira vítima do COVID-19 com medo do contágio e morte.

Em meio ao luto e ao sofrimento pela perda recente da mãe, por não poder fazer nem velório para se despedir e de não poder ao menos enterrá-la, a requerente teve que conviver com o preconceito e com os comentários maldosos dos vizinhos e conhecidos dizendo que a requerente estava espalhando o vírus. No momento de maior dor, a requerente teve também que driblar a dor do preconceito, o que tornou tudo isso ainda mais doloroso.”

(evento 1-INIC1, autos originários).

 

Para comprovar sua tese, a autora produziu prova testemunhal, tendo a testemunha, sra. Leonina, afirmado que as pessoas tiveram efetivamente um certo receio, preconceito “de chegar perto, de ir na residência, esse tipo de preconceito” porque “a população não sabia, não tinha vacina, não sabia como reagir”, e “todo mundo ficava receoso”.

Nesse ponto, é de se concordar com o juízo de primeiro grau, pois o suposto preconceito por que passou a autora/recorrente, na verdade, foi um sentimento coletivo que acometeu a todos, isto é, o receio de ser contaminado, o receio de ter algum parente contaminado, o medo da morte, o temor do desconhecido.

A pandemia ocasionada pelo vírus Covid-19, principalmente no seu início, em que eram veiculadas notícias de milhares de mortos em todo o mundo, ensejo um pânico coletivo de aproximação social. Não se pode dizer que existe um nexo causal entre esse sentimento coletivo de não querer aproximação com outras pessoas e a reportagem veiculada na mídia do ente público.

Cabe salientar que a Lei nº 13.979/2022, mesma lei invocada pela autora/recorrente como fundamento para sua tese, previa medidas de isolamento e quarentena. Como então pode alegar a recorrente que sofreu dano moral em razão de as pessoas não quererem se aproximar? Ora, era certo que no contexto da pandemia, ninguém queria se aproximar de ninguém, salvo exceções duramente reprimidas. Fez parte do contexto pandêmico a necessidade de isolamento.

Assim, embora esteja presente a prática de ato ilícito, não há dano moral indenizável, nesse caso, pois não se vislumbra o nexo causal direto entre o ato praticado pelo Município de Colinas e o fato de as pessoas não quererem se aproximar dos familiares da falecida, pois isso ocorreria independentemente de ter sido veiculada a notícia sobre o falecimento da Sra. Constância nas redes municipais, dado o cenário de pandemia vivenciado.

Ante o exposto, voto no sentido de NEGAR PROVIMENTO ao recurso, mantendo a sentença recorrida por seus próprios fundamentos. é o meu voto, que apresento aos Desembargadores componentes da 5ª Turma Julgadora, da 2ª Câmara Cível, deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins.



Documento eletrônico assinado por ADOLFO AMARO MENDES, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Instrução Normativa nº 5, de 24 de outubro de 2011. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.tjto.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 726072v2 e do código CRC ea4861ba.

Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ADOLFO AMARO MENDES
Data e Hora: 29/3/2023, às 21:19:2

 


 


Documento:726143
Poder Judiciário
JUSTIÇA ESTADUAL
Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins
GAB. DO DES. ADOLFO AMARO MENDES

Apelação Cível Nº 0002270-47.2021.8.27.2713/TO

RELATOR: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

APELANTE: CANDIDA GAMA VILANOVA (AUTOR)

ADVOGADO(A): KADÚ FARIA RODRIGUES (OAB TO006351)

ADVOGADO(A): URISMAR MIRANDA MORAIS (OAB TO009203)

APELADO: MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS (RÉU)

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. AÇÃO AJUIZADA POR FILHA DE PESSOA FALECIDA. RESPONSABILIDADE CIVIL DE ENTE PÚBLICO. OBJETIVA (ART. 37, §6º, CF). DIVULGAÇÃO, EM MÍDIA DO MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS-TO, DO NOME E IDADE DA PRIMEIRA PESSOA VÍTIMA DE COVID-19 NOS LIMITES MUNICIPAIS. CERTIDÃO DE ÓBITO INDICANDO, COMO CAUSA MORTIS, “DOENÇA RESPIRATÓRIA AGUDA GRAVE”, SEM FAZER MENÇÃO À COVID-19. DIVULGAÇÃO DE DADOS PESSOAIS QUE CONFIGURA CONDUTA ILÍCITA (INTELIGÊNCIA DO ART. 6º, §2º, DA LEI 13.979/2020). DANOS MORAIS, TODAVIA, NÃO EVIDENCIADOS. RECEIO DE APROXIMAÇÃO QUE É DECORRÊNCIA DO CONTEXTO PANDÊMICO. NEXO CAUSAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO NÃO PROVIDO.

 1. Cuida-se de ação ajuizada por filha de pessoa falecida no contexto da pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (Covid-19), na qual se alega que a divulgação do nome e idade da falecida, em notícia que informou ser esta a primeira vítima de Covid-19 nos limites territoriais do Município de Colinas do Tocantins-TO, configurou ato ilícito ensejador de danos morais, pelo fato de não constar, na certidão de óbito da de cujus, como causa mortis, referida doença.

2. No caso dos autos, ficou comprovado que a genitora da autora foi internada no Hospital Municipal de Colinas com quadro de suspeita de Covid-19, contudo, o resultado do exame laboratorial de swab só ficou pronto no dia do falecimento, só vindo a ser de conhecimento do corpo médico do hospital após o falecimento. Por esse motivo, a causa mortis não foi registrada, na certidão de óbito, como Covid-19, mas como "doença respiratória aguda grave". 

3. Põe-se em questão se o nome e a idade da falecida poderiam ter sido divulgados pelo Município de Colinas do Tocantins, em face do momento pandêmico vivido. A questão deve ser dirimida à luz do art. 6º, §2º, da Lei nº 13.979/2020, que prevê, expressamente, a obrigação de compartilhamento, entre órgãos públicos, de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade específica de evitar a sua propagação, fazendo ressalva, todavia, ao sigilo das informações pessoais. Todavia, para responder ao questionamento, não se pode fazê-lo somente com recurso à interpretação literal da lei, mas também levando em conta o interesse público colidente, relativamente ao conhecimento sobre os casos médicos de Covid-19, durante o contexto pandêmico.

4. Deve-se considerar que o Supremo Tribunal Federal vem julgando no sentido de conferir, à liberdade de expressão, uma posição preferencial prima facie frente aos direitos de personalidade, em razão de a liberdade de expressão ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades (vide Recl. 22328, Rel. Min. Roberto Barroso, julgada em 06/03/2018; ADPF 130, Rel. Min. Carlos Britto, julgada em 27/02/2008, etc.). Isso não significa que, no caso concreto, a liberdade de expressão (incluído o direito de informar) sairá sempre sobressalente, mas, tão somente que deve ser considerado o interesse dos cidadãos em geral de saber sobre fatos que importam para a coletividade.

5. No caso dos autos, deve-se distinguir, portanto, entre o interesse público e o interesse do público. É certo que a população em geral teria interesse em saber das circunstâncias nas quais ocorreu a morte de vítima da Covid-19, quanto a isso, não há dúvidas. Por outro lado, não se verifica um interesse direto da sociedade de saber quem faleceu como vítima de Covid-19, isto é, a pessoa individualizada que foi acometida pelo vírus e veio a falecer. A informação divulgada pelo Município de Colinas poderia informar a população da morte sem fazer referência ao nome da falecida. O nome da falecida, na verdade, não era de interesse público, mas sim interesse do público, e sua divulgação contribuiu, meramente, para a satisfação da curiosidade coletiva. Com isso, infere-se que a divulgação do nome e idade da falecida, pelo município de Colinas do Tocantins, violou o disposto no §2º, do art. 6º, da Lei nº  13.979/2020, configurando ato ilícito.

6. Com relação ao dano moral decorrente da divulgação de dados pessoais de pessoa falecida, não se pode recorrer à presunção de que é ocorrente in re ipsa, pois a aplicação de forma irrestrita da presunção de dano no terreno da proteção de dados pessoais importaria em risco demasiado de situações desproporcionais. Nesse passo, entende-se que os danos morais, em caso de violação do direito de proteção de dados pessoais, devem ser comprovados, não se aplicando qualquer tipo de presunção sobre a sua ocorrência.

7. No caso dos autos, a autora/recorrente, alega ter sofrido preconceito por parte da sociedade, porque as pessoas não queriam se aproximar da família da primeira vítima do Covid-19, com medo do contágio e morte.

8. Ao contrário do que alega a recorrente, não se pode inferir, dessa situação, a ocorrência de danos morais. Não se pode dizer que existe um nexo causal entre o sentimento coletivo de não querer aproximação com outras pessoas, em contexto de pandemia, e a reportagem veiculada na mídia do ente público. A Lei nº 13.979/2022 previa medidas de isolamento e quarentena, portanto, não pode a recorrente alegar que há dano decorrente do fato de outras pessoas não quererem se aproximar. É certo que no contexto da pandemia, ninguém queria se aproximar de ninguém, pois fez parte do contexto pandêmico a necessidade de isolamento.

9. Assim, embora esteja presente a prática de ato ilícito, não há dano moral indenizável, nesse caso, pois não se vislumbra o nexo causal direto entre o ato praticado pelo Município de Colinas e o fato de as pessoas não quererem se aproximar dos familiares da falecida, pois isso ocorreria independentemente de ter sido veiculada a notícia sobre o falecimento nas redes municipais, dado o cenário de pandemia vivenciado.

10. Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Sob a Presidência do Excelentíssimo Senhor Desembargador EURÍPEDES LAMOUNIER, na 4ª SESSÃO VIRTUAL ORDINÁRIA, da 5ª TURMA JULGADORA da 2ª CÂMARA CÍVEL, decidiu, por unanimidade, NEGAR PROVIMENTO ao recurso, mantendo a sentença recorrida por seus próprios fundamentos, nos termos do voto do Relator, nos termos do voto do(a) Relator(a).

Votaram acompanhando o Relator, o Desembargador MARCO ANTHONY STEVESON VILLAS BOAS e a Desembargadora ANGELA MARIA RIBEIRO PRUDENTE. 

A Douta, Procuradoria-Geral de Justiça esteve representada pelo o Procurador de Justiça LUCIANO CESAR CASAROTI.

Palmas, 22 de março de 2023.



Documento eletrônico assinado por ADOLFO AMARO MENDES, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Instrução Normativa nº 5, de 24 de outubro de 2011. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.tjto.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 726143v4 e do código CRC 8354aa72.

Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ADOLFO AMARO MENDES
Data e Hora: 31/3/2023, às 9:35:35

 


 


Documento:724376
Poder Judiciário
JUSTIÇA ESTADUAL
Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins
GAB. DO DES. ADOLFO AMARO MENDES

Apelação Cível Nº 0002270-47.2021.8.27.2713/TO

RELATOR: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

APELANTE: CANDIDA GAMA VILANOVA (AUTOR)

ADVOGADO(A): KADÚ FARIA RODRIGUES (OAB TO006351)

ADVOGADO(A): URISMAR MIRANDA MORAIS (OAB TO009203)

APELADO: MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS (RÉU)

RELATÓRIO

 

TRATA-SE de APELAÇÃO CÍVEL interposta por CANDIDA GAMA VILANOVA, contra a sentença proferida nos autos da AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS C/C OBRIGAÇÕES DE FAZER E NÃO FAZER nº 0002270-47.2021.8.27.2713, movida contra o MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS-TO, ora apelado.

O juízo de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos formulados pela autora, ora recorrente, na inicial, e condenou a requerente ao pagamento das despesas processuais, inclusive honorários advocatícios, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, suspensa a exigibilidade em razão de ser a autora beneficiária da assistência judiciária gratuita.

Em suas razões recursais, a recorrente rememora que a ação foi ajuizada porque o município de Colinas do Tocantins-TO teria divulgado o óbito de sua genitora, sra. Constância, como sendo a primeira morte decorrente de COVID-19 naquela cidade, constando tal informação tanto em seu website como em suas redes sociais, publicações realizadas em 22/05/2020. Relembra que constou na declaração de óbito, emitida na data do falecimento (21/05/2020), que a morte se deu em razão de “doença respiratória aguda grave” e que o falecimento também foi fruto de complicações de diabetes e sequelas de AVC (CIDs 10-U04; 10-E10 e 10-I69.4), respectivamente. Lembra também que o exame para constatação de COVID-19 foi feito via swab de orofaringe no dia 19/05/2020 às 16h, e entregue no dia 21/05/2020, constando no documento que os sintomas da falecida se iniciaram em 12/05/2020, mas na verdade as problemáticas se iniciaram somente na data da internação.

Entende que a sentença merece reforma, porque a COVID-19 já tinha sido inscrita no Cadastro Internacional de Doenças Especificadas em 01/04/2020 (CID U07.1), de modo que a recorrida não seguiu os parâmetros médicos adequados, caso realmente a de cujus tenha falecido em decorrência da doença pandêmica. Além disso, não foram observadas as determinações feitas pelos órgãos competentes, pois em casos de suspeita ou provável morte decorrente de COVID-19, deveria ter sido incluída na Declaração de Óbito tal circunstância, conforme Portaria Conjunta nº 01, de 30/03/2020, publicada pelo CNJ. Ainda, quando do falecimento da Sra. Constância, a municipalidade não vivia o auge do período pandêmico, pois na época do óbito haviam 5 (cinco) casos ativos no município, não se justificando a falta de observância das normativas legais e de saúde no presente caso.

Segue dizendo que o município já poderia saber a causa mortis, pois o exame laboratorial atestando a covid saiu na data do óbito (21/05/2020). Por fim, somente com acesso e divulgação de dados do prontuário da falecida (informações sigilosas), a municipalidade recorrida poderia ter veiculado na imprensa oficial e em suas redes sociais a causa morte da Sra. Constância, uma vez que no documento de acesso público (certidão de óbito) não consta tal informação, pelo contrário, lá consta apenas, como causa mortis, doença respiratória aguda grave. Assim, defende que houve a divulgação indevida da causa da morte da genitora da recorrente, pairando inclusive dúvida quanto ao real motivo do óbito, sendo patente o dano à imagem da requerente e de todo seu grupo familiar, devido à exposição negativa vivenciada, preconceito e repulsa sofridos em meio à sociedade.

Argumenta que não deve prevalecer o entendimento do juízo a quo no sentido de que os dados atinentes ao óbito da falecida são públicos, pois a legislação que trata das medidas de enfrentamento da COVID-19 determina que deverão ser objeto de compartilhamento entre as entidades da administração pública (frisa), não ficando autorizada a divulgação do nome e da causa mortis do paciente em site oficial ou para a mídia, sem autorização da família. Invoca, como fundamentos, o §2º, art. 6º, da Lei nº 13.979/2020, que faz ressalva ao direito de sigilo de informações pessoais, o inciso II, §2º, do art. 3º, da mesma lei, que prevê o respeito à dignidade, e o Decreto nº 10.212/2020, art. 45, que trata da forma como os dados pessoais dos pacientes devem ser utilizados.

Aduz que a liberdade de imprensa não é absoluta, sendo restrita em caso de informações de caráter personalíssimo, sendo que no caso houve ofensa à honra e à intimidade. Diz que o nome e a causa mortis de paciente não é dado público, e sim dado pessoal do grupo familiar, tratando-se de informação constante no prontuário médico, conforme art. 1º, da resolução nº 1.638/02 do CFM e art. 73 do Código de Ética Médica. Requer o provimento do recurso para que sejam julgados procedentes os pedidos inaugurais.

Em contrarrazões, o Município de Colinas do Tocantins alega que o recurso não deve ser admitido, por falta de dialeticidade recursal. No mérito, defende a manutenção da sentença, aduzindo, sinteticamente, que não ficou evidenciado o nexo de causalidade entre a conduta da administração e o dano moral alegado.

É o relatório. Peço dia para julgamento.

 

Data certificada no sistema E-proc.



Documento eletrônico assinado por ADOLFO AMARO MENDES, Relator, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Instrução Normativa nº 5, de 24 de outubro de 2011. A conferência da autenticidade do documento está disponível no endereço eletrônico http://www.tjto.jus.br, mediante o preenchimento do código verificador 724376v2 e do código CRC 172d5a90.

Informações adicionais da assinatura:
Signatário (a): ADOLFO AMARO MENDES
Data e Hora: 24/2/2023, às 11:0:3

 


 


Extrato de Ata
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins

EXTRATO DE ATA DA SESSÃO ORDINÁRIA DE 22/03/2023

Apelação Cível Nº 0002270-47.2021.8.27.2713/TO

RELATOR: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

PRESIDENTE: Desembargador EURÍPEDES LAMOUNIER

PROCURADOR(A): LUCIANO CESAR CASAROTI

APELANTE: CANDIDA GAMA VILANOVA (AUTOR)

ADVOGADO(A): KADÚ FARIA RODRIGUES (OAB TO006351)

ADVOGADO(A): URISMAR MIRANDA MORAIS (OAB TO009203)

APELADO: MUNICÍPIO DE COLINAS DO TOCANTINS (RÉU)

Certifico que a 2ª CÂMARA CÍVEL, ao apreciar os autos do processo em epígrafe, proferiu a seguinte decisão:

A 5ª TURMA JULGADORA DA 2ª CÂMARA CÍVEL DECIDIU, POR UNANIMIDADE, NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO, MANTENDO A SENTENÇA RECORRIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS, NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR.

RELATOR DO ACÓRDÃO: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

Votante: Desembargador ADOLFO AMARO MENDES

Votante: Desembargador MARCO ANTHONY STEVESON VILLAS BOAS

Votante: Desembargadora ANGELA MARIA RIBEIRO PRUDENTE

CARLOS GALVÃO CASTRO NETO

Secretário