Por ser próprio e tempestivo, bem como ausentes as hipóteses do artigo 1.011, I, do Código de Processo Civil, conheço do presente recurso e, mediante aplicação do artigo 1.012, § 1º, V, do mencionado diploma legal, o recebo apenas no efeito devolutivo.
Conforme relatado, trata-se de Apelação, interposta pelo ESTADO DO TOCANTINS, e Remessa Necessária de Sentença prolatada nos Autos da ação civil pública em epígrafe, ajuizada em seu desfavor, e do SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE, pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO TOCANTINS.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO TOCANTINS, em defesa do interesse individual indisponível de 12 pacientes que se encontravam internados na UPA 24hs de Gurupi, ajuizou a ação civil pública em epígrafe, para garantir a transferência dos pacientes internados, ou que vierem a ser internados, e incluídos no Serviço de Regulação Estadual (SER/TO), para hospitais que disponham de leitos clínicos ou de UTI Covid.
O juiz concedeu a tutela de urgência e, posteriormente, por Sentença, confirmou a medida liminar, para determinar: aos requeridos que viabilizem, imediatamente, a transferência de todos os pacientes internados ou que venham a ser internados, na UPA de Gurupi para tratamento de COVID, e incluídos no Serviço de Regulação Estadual (SER/TO), para hospitais que disponham de leitos clínicos ou de UTI Covid, conforme respectiva indicação médica, e disponibilizem os demais serviços, procedimentos, insumos e medicamentos necessários aos tratamentos, seja diretamente pelo serviço público de saúde ou por meio de terceiros, pessoa física e/ou jurídica de direito privado (art. 197, CF e art. 4º, § 2º, da Lei Federal nº 8.080/90); aos requeridos que, em caráter de urgência, se abstenham de negar acesso aos pacientes que venham a ser internados para tratamento de Covid, na UPA de Gurupi, com regulação para hospitais que disponham de leitos clínicos ou de UTI Covid, conforme respectiva indicação médica, devendo ser respeitada a lista de espera organizada e regulada pelo Poder Público para acessar o serviço, de forma a verificar a inserção do paciente nos sistemas de regulação, de acordo com o regramento de referência, observados os critérios clínicos e de priorização, a fim de que os pacientes tenham amplo acesso ao direito constitucional à saúde e ao tratamento médico que lhe é garantido pelo SUS; aos requeridos que viabilizem, imediatamente, o custeio e a internação dos pacientes em leitos clínicos e de UTI de hospital da rede privada de saúde, no Estado do Tocantins ou qualquer outra unidade da Federação, inclusive com remoção via UTI Móvel, tudo às expensas do recurso público; advertindo o requerido, ESTADO DO TOCANTINS, que, em caso de descumprimento da ordem judicial, ficará obrigado ao pagamento da multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por paciente não recepcionado pelo SUS que venha a óbito, limitada a cem mil por paciente.
Inconformado, o ESTADO DO TOCANTINS interpôs Apelação.
Nas suas razões recursais, sustenta que a decisão deve ser reformada, considerando que não restou demonstrado a inércia/omissão da Administração Pública no deslinde do caso, existindo atuação da Administração para regularização do fornecimento dos leitos de UTI no Serviço de Regulação Estadual (SER/TO). Alega a intangibilidade das decisões administrativas pelo Poder Judiciário; que é inadmissível que o SUS possa ressarcir despesas particulares; a aplicação da reserva do possível; e o elevado valor fixado para as astreintes. Ao final, requer o provimento do presente recurso, a fim de reformar a sentença recorrida e julgar totalmente improcedentes os pedidos formulados.
Em Contrarrazões, o apelado pugna pelo não provimento do apelo.
Instada a se manifestar, a Procuradoria Geral de Justiça opina pelo não provimento do apelo e, em remessa necessária, pela manutenção da Sentença, confirmando-se a Sentença, pelos seus próprios e jurídicos fundamentos.
Com efeito, o artigo 196, da Constituição Federal, impõe ao Estado (em suas três esferas) o dever de política social e econômica que visem reduzir doenças, com manutenção dos serviços pertinentes, assegurando-se direito à saúde a todos os cidadãos, sendo conveniente ressaltar que existe o Sistema Único de Saúde, com financiamento de recursos da Seguridade Social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes, nos termos do que dispõe o artigo 198, da Constituição Federal. A Lei nº 8.080, de 1990, em seu artigo 2º, repetiu que a saúde é um direito fundamental do ser humano, incumbindo ao Estado prover as condições ao seu pleno exercício, disciplinando o Sistema Único de Saúde, incumbindo aos entes referidos a prestação de serviços de saúde à população.
Em razão da solidariedade, os entes públicos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) possuem legitimidade passiva nas demandas cuja causa de pedir é a negativa, pelo SUS (seja pelo gestor municipal, estadual ou federal), de prestações na área de saúde. Em decorrência da solidariedade dos entes públicos, na garantia do direito a saúde, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem posicionamento firme no sentido de que a pessoa pode manejar ação em face de todos, de dois, ou de apenas um dos entes, ou seja, o polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente.
Passo ao exame do mérito.
Versam os Autos sobre a garantia constitucional de acessibilidade à saúde. O direito em discussão é daqueles que integram o mínimo existencial, garantidor da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal).
A questão posta à apreciação, a despeito do inquestionável encargo estatal, de garantia ao direito à saúde, apresenta complexos entraves de ordem prática, dada a atual ineficiência do Poder Público quanto à efetivação dos direitos fundamentais. Nesse contexto, são trazidas ao Poder Judiciário situações que, como a presente, ensejam medidas protetivas urgentes, cuja necessidade se sobrepõe ao exame minuciosos da matéria de fundo, dando ensejo à atuação imediata, mediante exercício da tutela jurisdicional, em face da qual não há de se falar em vedação legal ou indevida interferência entre os Poderes Estatais.
Com efeito, o caput, do artigo 5º, da Constituição Federal, garante o direito à vida, o que implica em uma vida digna e saudável, motivo pelo qual políticas e diretrizes que assegurem a prevenção e o tratamento das doenças que podem fragilizar o ser humano devem estar à disposição de todos os cidadãos. Note-se que o direito à saúde está intimamente ligado ao direito à vida e à dignidade da pessoa, tendo sido elevado a direito fundamental do homem, independentemente de suas condições financeiras.
A propósito desta afirmação, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal) é fundamento do Estado Democrático de Direito, devendo ser encarado como referencial que ilumina a interpretação de toda a normatividade jurídica. Igualmente, o direito à vida está resguardado em tratados internacionais, que foram ratificados pelo Brasil, como o da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), o qual declara, no seu artigo 4º, que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida”, acrescentando que “esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção” e que “ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Apesar de o estado alegar que não restou demonstrado a inércia/omissão da Administração, existindo atuação para regularização do fornecimento dos leitos de UTI no Serviço de Regulação Estadual (SER/TO), verificou-se situação anormal, onde pacientes, usuários do SUS, internados, na UPA 24 hs de Gurupi, aguardavam a disponibilização de leito clínico e de UTI Covid, conforme indicação médica, para Hospitais sob a Gestão Estadual que possuíssem leitos clínicos ou de UTI Covid.
Conforme bem ponderado pela Cúpula Ministerial, comprovou-se que, por diversas vezes, a transferências dos pacientes só foram realizadas após a judicialização, a exemplos dos Autos 002656-50.2021.8.27.2722; 0002710-16.2021.827.2722; 0002714-53.2021.827.2722; 0002708- 46.2021.827.2722; e em 4 leitos de UTI Covid, tal como se observa nas ações civis públicas: 0002715.- 38.827.2722 e 0002709-31.827.2722.
Logo, a Sentença combatida observou o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito constitucional à saúde, posto que, evidenciada a omissão do estado em fornecer leitos clínicos ou de UTI Covid, adequadamente, admite-se a atuação do Poder Judiciário para efetivação do direito constitucional à saúde, sem ofensa aos princípios da separação dos poderes e da reserva do possível, não havendo que se falar na tese de que o SUS, ao cumprir as determinações judiciais, se tornaria em mero ressarcidor de despesas particulares.
Em que pese as reais dificuldades administrativas de efetivação das garantias constitucionais, apresentou-se situação emergencial, passível de proteção jurisdicional. Cumpre destacar que, nestes casos, não se aplica a cláusula da reserva do possível, seja porque não foi comprovada a incapacidade econômico financeira do Ente Público, seja porque a pretensão de proteção à saúde é garantia constitucional, não havendo escusas legais que amparem a resistência do Poder Público em assistir o paciente. Significa dizer que, entre os dois valores em jogo, o direito à vida e o direito do ente público, de bem gerir as verbas públicas, sob qualquer ótica, deve prevalecer o bem maior (vida).
O discurso econômico (ausência de dotação orçamentária) não pode superar o direito à saúde e, consequentemente, à vida, não sendo capaz de afastar o dever constitucional imposto ao Poder Executivo Estadual e Municipal de dar atendimento médico à população, garantindo aos hipossuficientes, entre outros, o direito à assistência necessária e a uma vida minimamente digna, inclusive, com o fornecimento de medicamentos indispensáveis à manutenção da saúde.
Outrossim, na efetivação do direito à saúde, não configura ofensa ao Princípio da Separação dos Poderes, a interferência do Poder Judiciário nas políticas públicas, quando comprovada a omissão estatal e necessidade do tratamento, posto ser o judiciário guardião da Constituição a qual dispõe expressamente ser a saúde direito fundamental humano e dever do Estado (artigo 196).
Dessa maneira, o Princípio da Independência dos Poderes não pode ser empregado para burlar a Constituição e contrariar o interesse público, visto que a concretização do texto constitucional não é dever apenas do Poder Executivo e do Legislativo, mas também do Judiciário.
Nesse sentido:
“[...] A intervenção do poder judiciário diante da negativa do poder executivo em fornecer o insumo pleiteado se mostra adequada como forma de assegurar o direito constitucionalmente previsto à saúde, sem, contudo, configurar afronta ao princípio da separação dos poderes. 3. A invocação do princípio da reserva do possível, desacompanhada de qualquer elemento concreto capaz de evidenciar a limitação financeira do ente público e o suposto prejuízo aos munícipes, por si só, não pode justificar o desatendimento à ordem constitucional de facilitação do acesso aos serviços de saúde”. (TJMG. AI 1.0249.13.001221-7/001, Relatora: Desa. SANDRA FONSECA, 6ª Câmara Cível, public. 11/3/2014). Grifei.
É certo que, em regra, a implementação de política pública é da alçada do Executivo e do Legislativo, todavia, na hipótese de injustificada e desarrazoada omissão, caso destes autos, o Judiciário deve e pode agir para forçar os outros poderes a cumprirem o dever constitucional que lhes é imposto.
Diante disso, ou o Judiciário age como poder e põe fim às omissões abusivas, injustificadas e desarrazoadas praticadas pelo Executivo, ou cidadãos em situações de risco continuarão sendo vítimas do abandono da saúde pública.
Clarividente, pois, o dever público de propiciar o tratamento médico prescrito, em consagração ao direito fundamental à vida digna e saudável, sobretudo, ante a urgência que o caso requer.
Quanto à multa diária aplicada, em caso de descumprimento, tenho que seu arbitramento, em ações ajuizadas para garantir a aplicação do direito constitucional à saúde, tem se revelado bastante eficaz para compelir os demandados ao cumprimento da obrigação. A fixação da penalidade é perfeitamente cabível, na medida em que o bem maior a ser tutelado é a vida e o não cumprimento da determinação judicial afronta o princípio da dignidade da pessoa humana e atenta contra a dignidade da justiça. Registre-se, contudo, que se deve ter prudência na fixação do seu valor, mormente quando aplicada em desfavor de entes públicos. É imprescindível que o julgador observe os princípios da proporcionalidade e razoabilidade na sua fixação, a fim de que não cause o enriquecimento sem causa e não haja mudança no foco da demanda.
No caso vertente, constato se apresentar razoável o valor da multa diária aplicada (R$ 10.000,00), limitada até o patamar de 100.000,00 (cem mil reais), por paciente não recepcionado pelo SUS que venha a óbito.
Posto isso, voto por negar provimento à Apelação do ESTADO DO TOCANTINS; e negar provimento à Remessa Necessária, para manter a Sentença que confirmou a medida liminar para determinar aos requeridos, ESTADO DO TOCANTINS e SECRETÁRIO DE ESTADO DA SAÚDE, que viabilizem, imediatamente, a transferência de todos os pacientes internados ou que venham a ser internados, na UPA de Gurupi para tratamento de Covid, e incluídos no Serviço de Regulação Estadual (SER/TO), para hospitais que disponham de leitos clínicos ou de UTI Covid, e disponibilizem os demais serviços, procedimentos, insumos e medicamentos necessários aos tratamentos, seja diretamente pelo serviço público de saúde ou por meio de terceiros, pessoa física e/ou jurídica de direito privado; e que, em caráter de urgência, se abstenham de negar acesso aos pacientes que venham a ser internados para tratamento de Covid, na UPA de Gurupi, com regulação para hospitais que disponham de leitos clínicos ou de UTI Covid, devendo ser respeitada a lista de espera organizada e regulada pelo poder público para acessar o serviço, de forma a verificar a inserção do paciente nos sistemas de regulação, de acordo com o regramento de referência, observados os critérios clínicos e de priorização, a fim de que os pacientes tenham amplo acesso ao direito constitucional à saúde e ao tratamento médico que lhe é garantido pelo SUS; e que viabilizem, imediatamente, o custeio e a internação dos pacientes em leitos clínicos e de UTI de hospital da rede privada de saúde, no Estado do Tocantins ou qualquer outra unidade da Federação, inclusive, com remoção via UTI Móvel, tudo às expensas do recurso público; advertindo o requerido, ESTADO DO TOCANTINS, que, em caso de descumprimento da ordem judicial, ficará obrigado ao pagamento da multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por paciente não recepcionado pelo SUS que venha a óbito, limitada a cem mil por paciente; sem majoração de honorários, haja vista a não fixação desta verba sucumbencial na Sentença recorrida.