O presente Reexame Obrigatório preenche os requisitos de admissibilidade, motivo porque dele conheço.
Como venho de relatar, trata-se REEXAME NECESSÁRIO (duplo grau de jurisdição) em face da sentença proferida pelo MM. Juiz de Direito da Vara de Execuções Fiscais e Saúde da Comarca de Palmas-TO, nos autos da Ação Civil Pública nº 0028780-83.2020.827.2729, proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em face do ESTADO DO TOCANTINS e do MUNICÍPIO DE PALMAS, visando a tutela do direito à saúde de RAIMUNDA PLÁCIDA DE SOUSA e DE OUTRAS PESSOAS QUE AGUARDAM LEITOS CLÍNICO COVID.
Versam os autos acerca da necessidade da transferência da substituída para unidade hospitalar dotada de Leito Clínico Covid, em razão de complicações no seu quadro clínico, decorrentes da COVID 19, assim como de outros pacientes que estivessem nas UPAS Norte e Sul, aguardando transferência.
Após regular instrução, sobreveio sentença (evento 74 – autos originários) declarando extinto o processo, sem julgamento de mérito, nos termos do artigo 485, V do CPC, em relação ao pedido de natureza coletiva, consistentes na disponibilização de leitos clínicos a todos os pacientes da rede pública de saúde, por correspondência com o objeto das ações coletivas de nº 00184283720188272729 e 00304956320208272729. Outrossim, concernente à disponibilização da transferência da idosa Raimunda Plácida de Souza para leito clínico Covid, restou confirmada a tutela antecipatória concedida, pelo que julgou-se procedente o pedido inicial, reconhecendo a responsabilidade solidária do ESTADO DO TOCANTINS e do MUNICÍPIO DE PALMAS na consecução do dever prestacional de assistência integral à saúde da paciente.
Pois bem.
A sentença não está a merecer reparos.
Dispõem os artigos 6º e 196 da Constituição Federal de 1988:
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Há muito já se superou o entendimento de que as normas que consagram direitos sociais seriam meramente programáticas, sendo reconhecido ao direito à saúde o status de direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional.
Sobre o tema, mostram-se pertinentes os ensinamentos do Min. Celso de Mello:
“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente” (STF, 2ª Turma, RE 393175 AgR/RS, rel. Min. Celso de Mello, j. em 12/12/2006).
Com efeito, o direito constitucional à saúde se traduz em um direito fundamental do ser humano, cujas condições indispensáveis para o seu pleno exercício devem ser providas pelo Estado, o que abrange não só o acesso a tratamentos que visem à cura e à prevenção de moléstias, mas também à redução de dores e desconfortos, o que, obviamente, implica o fornecimento gratuito de insumos e medicamentos pelo Poder Público.
Vale ponderar que a atribuição da responsabilidade à prestação de saúde, conforme entendimento da jurisprudência de nossos Tribunais Superiores é no sentido de que é solidária a responsabilidade da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, sendo de todos o dever fundamental subjetivo de prestação à saúde aos que dela necessitam e não podem custeá-la, não importando o fato de haver repartição de responsabilidade entre os entes Federados, para escusarem-se do dever consagrado em norma constitucional, porquanto aludido ato normativo não possa sobrepor-se a direito consagrado em norma constitucional, como é o direito à saúde.
Assim, a obrigação de fornecer o tratamento médico estende-se à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, conforme o disposto nos artigos 23 e 30 da Constituição Federal de 1988, que assim preceituam:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;”
“Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;”
Logo, o Estado Tocantins e o Município de Palmas, ora requeridos, são partes legítimas para cumprir a obrigação ora vindicada na presente ação civil pública.
Feitas tais considerações, verifica-se que, no caso em discussão, os documentos encartados aos autos demonstram, de forma inequívoca, que a Sra. Raimunda Plácida de Souza apresentava, à época do ajuizamento da ação, problemas decorrentes de complicações da COVID 19, razão pela qual se mostrava imprescindível sua transferência para unidade hospitalar dotada de Leito Clínico Covid, conforme orientação médica (evento 1 – ANEXO PET INI6).
Percebe-se, ainda, que restou devidamente demonstrada a imprescindibilidade da medida liminar concedida pelo Julgador Singular, no tocante à determinação dos requeridos que disponibilizassem à paciente vaga em Leito Clínico, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, face à constatação da inércia dos entes públicos requeridos em resolver a pendenga. Além disso, é indubitável a hipossuficiência financeira da parte, bem como a obrigação dos entes estatais demandados em assegurar-lhe o amplo acesso à saúde.
Frise-se que o bem jurídico objeto da lide é a saúde da paciente, que pode ser prejudicada de forma irremediável caso o tratamento clínico indicado não lhe fosse prontamente fornecido.
Como é cediço, o direito à saúde representa consequência inexorável do direito à vida e ambos consagram a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil.
Da exegese da ordem constitucional dessume-se que o Estado deverá, por meio de políticas sociais e econômicas, propiciar ao cidadão não qualquer terapêutica, mas o tratamento mais adequado e eficaz, capaz de ofertar ao enfermo maior dignidade e menor sofrimento.
O Supremo Tribunal Federal há muito posicionou-se sobre a prevalência do direito à vida sobre qualquer outro interesse financeiro e secundário do Estado, in verbis:
“Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da república (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo uma vez configurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador um só possível opção: o respeito indeclinável à vida.” (PETMC n.º 1.246/SC, Rel. Min. Celso de Mello, em 31.01.1997).
No mesmo sentido, segue a firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA E À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO. HEPATITE C. RESTRIÇÃO. PORTARIA/MS N.º 863/02. (...) O medicamento reclamado pela impetrante nesta sede recursal não objetiva permitir-lhe, apenas, uma maior comodidade em seu tratamento. O laudo médico, colacionado aos autos, sinaliza para uma resposta curativa e terapêutica "comprovadamente mais eficaz", além de propiciar ao paciente uma redução dos efeitos colaterais. A substituição do medicamento anteriormente utilizado não representa mero capricho da impetrante, mas se apresenta como condição de sobrevivência diante da ineficácia da terapêutica tradicional. Assim sendo, uma simples restrição contida em norma de inferior hierarquia (Portaria/MS n.º 863/02) não pode fazer tábula rasa do direito constitucional à saúde e à vida, especialmente, diante da prova concreta trazida aos autos pela impetrante e à míngua de qualquer comprovação por parte do recorrido que venha a ilidir os fundamentos lançados no único laudo médico anexado aos autos. As normas burocráticas não podem ser erguidas como óbice à obtenção de tratamento adequado e digno por parte do cidadão carente, em especial, quando comprovado que a medicação anteriormente aplicada não surte o efeito desejado, apresentando o paciente agravamento em seu quadro clínico. Recurso provido. (RMS 17903 / MG, Relator Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, Data da Publicação DJ 20.09.2004)”.
Portanto, tenho que a sentença ora submetida ao reexame necessário julgou corretamente a questão posta em juízo, tendo sido proferida fundamentadamente e em consonância com legislação pertinente, bem como jurisprudência dos Tribunais Superiores, mostrando-se irrepreensível no julgamento de mérito, devendo ser mantida por seus próprios fundamentos.
Diante do exposto, acolhendo o parecer da Douta Procuradoria-Geral de Justiça, conheço do Reexame Necessário por presentes os requisitos de sua admissibilidade, porém, VOTO NO SENTIDO DE NEGAR-LHE PROVIMENTO, dando por reexaminada a sentença de primeiro grau, que deve ser mantida nos seus exatos termos.